domingo, 4 de novembro de 2007

O Homem que Comprou o Mundo


Dia 11 de agosto, às 22:40h, a TV Cultura exibiu no Cine Brasil O Homem que Comprou o Mundo (1968), primeiro longa escrito e dirigido por Eduardo Coutinho, e que pode ter alguma afinidade com a ficção científica. O filme abre com letreiro situando a ação no país “Reserva 17”. Depois de deixar sua noiva Rosinha (Marília Pêra) em casa, José Guerra (Flávio Migliaccio) presencia uma dupla de motoqueiros agredir um homem de turbante. Falando num idioma ininteligível, o hindu dá um cheque de “cem mil strikmas” a José Guerra, pouco antes de morrer. O herói tenta descontar o cheque, mas o supercomputador de um banco high-tech entra em pane ao tentar converter a quantia, que se revela astronômica. Um alarme é acionado e José Guerra recebe ordem de prisão, por motivo de segurança nacional.
O douto Professor Bagdá Pompéia (Abel Pêra), autor de uma monografia sobre as strikmas (mas que ninguém conhece, pois naquele país ninguém lê o que ele escreve), é convocado para explicar o valor dessa estranha moeda. Segundo o professor: “As strikmas são moedas cunhadas pelo faraó Ramsés II no Antigo Egito, no ano de 1219 a.C., pelo processo da laparotomia...” Aqui o professor é interrompido pelo primeiro-ministro de Reserva 17 (Raul Cortez), que lhe pergunta o valor das strikmas. Mas o acadêmico não quer saber de ir direto ao ponto e continua sua dissertação, contando que as strikmas teriam sido cunhadas com a imagem da misteriosa deusa Nefertite. “Alguns séculos mais tarde foram roubadas da pirâmide de Quéops por Xerxes II, passando sucessivamente às mãos de grandes estadistas como Gengis Khan, o gentil Calígula, Átila, o Doce, Pepino, o Breve, o Visconde de Marica...”, continua o professor Bagdá, indiferente aos apelos sobre o valor da moeda. “Durante a inquisição, as strikmas foram excomungadas pelo papa Urbano XXXVI e atiradas no fundo do Mar Cáspio. Aí as pistas se confundem. Há controvérsias. Teriam desaparecido? Teriam aparecido? Que sei eu?”, divaga o professor. Com muito custo, as autoridades conseguem finalmente extrair do intelectual a informação sobre o valor de uma strikma. As strikmas seriam de “ouro cru”, um metal tão raro que só seria encontrado nas próprias strikmas. Cada strikma valeria cem milhões de dólares e teria “o tamanho de um pneu de Fenemê”. Logo, cem mil strikmas valeriam cem trilhões de dólares.
Cientes da fortuna pertencente a José Guerra, as autoridades de Reserva 17 decidem superprotegê-lo, isolando-o numa fortaleza. Afinal, como cidadão, José Guerra fazia agora de seu país a nação mais rica do mundo. As autoridades festejam o novo poder econômico de Reserva 17, planejando acabar com o analfabetismo, a malária, a fome, a gripe e a desonestidade - mas também com a luta de classes, o clima tropical, o Cinema Novo e a literatura de cordel.
A essa altura, já se sabe que Reserva 17 é uma alegoria do Brasil, enquanto a “Potência Anterior” equivale aos EUA, e a “Potência Posterior” à URSS. Outras denominações, tais como “País Neutro” e “União dos Bancos Neutros”, também contribuem para uma atmosfera “cartesiana” e “positivista” de FC distópica. Os traços kafkianos de O Homem que Comprou o Mundo já se evidenciam nos nomes dos países e no tratamento de José Guerra por parte das autoridades. Os personagens intelectuais do filme, excêntricos com jargão peculiar e falas rebuscadas, beirando o completo nonsense, acenam com uma crítica à academia ou a uma suposta alta cultura.
Embora tratado com polidez, José Guerra torna-se prisioneiro na cela de um forte inexpugnável desde 1820. O que hoje Jean-Claude Bernardet aponta como “doença infantil da metalinguagem” no cinema brasileiro já dava seus surtos há muito tempo. Em O Homem que Comprou o Mundo, filme contemporâneo do Cinema Novo (e espécie de resposta particular ao movimento), o personagem Jeff Cagliostro apresenta-se a Rosinha como um “cúmplice dramático”: “eu faço a ação caminhar, senhorita. Meu roteiro é infalível, quer ver?” A metalinguagem continua em passagens como a do documentário sobre José Guerra, exibido pela TV da Potência Anterior (leia-se EUA): “Joe Guerra: The Strykman”, “um filme-verdade-épico realizado e narrado por Alpha 49.” Alpha 49 é um computador, produto da Wiener Inc. e clara citação do Alpha 60 de Aplhaville (1956), de Jean-Luc Godard. Com a ajuda de um cabo do exército (Hugo Carvana), seu carcereiro, José Guerra casa-se com Rosinha e ela começa a ter delírios de grandeza como a mulher mais rica do mundo. Mas o herói passa a ser disputado pelas superpotências.
Espirituosa é a maneira como os agentes especiais da Potência Anterior, enviados a Reserva 17 para seqüestrar José Guerra, distraem os guardas da fortaleza. Tudo começa com um dos agentes estrangeiros fazendo embaixadinhas próximo aos soldados. O primeiro deles (Milton Gonçalves) começa a trocar passes com o agente da PA e logo todos os demais soldados se animam a “bater uma bolinha”. Ao som da música do Canal 100, os guardas entregam-se todos a uma típica “pelada”, numa curiosa alegoria sobre pão e circo no país do futebol.
Na cela de José Guerra, os agentes esforçam-se por seduzi-lo a viver na PA, nação plena de prazeres e delícias a oferecer. O herói acaba carregado para fora da fortaleza nos braços da agente interpretada pela transformista Rogéria. Mas os agentes da Potência Posterior também querem o “Strykman” e, numa cena que faz lembrar ainda mais a famosa chanchada de Carlos Manga, O Homem do Sputnik (1959), interceptam os rivais da PA. Uma bomba é atirada entre as duas comitivas e José Guerra acaba sob os cuidados do cabo-carcereiro, que o leva ao QG da MOSI, a Misteriosa Organização Secreta Internacional, misto de Maçonaria e Ku Kux Klan. Lá, o Strykman é recebido pelo grão-mestre da ordem, que se revela o próprio cabo-carcereiro. A MOSI, explica o grão-mestre, tem por missão salvar o mundo. Seus membros são “a favor do aperfeiçoamento infinito do espírito” e contra os governos, o materialismo moderno, a máquina e a violência. José Guerra acaba coagido a se tornar membro da MOSI, mas durante o ritual de iniciação consegue armar um rebuliço e escapar do QG. O Strykman foge para bem longe, primeiro correndo, depois pedalando, de patinete, bonde, trem, etc., e o filme termina com ele remando, ainda em fuga.
Com argumento de Zelito Viana, Luis Carlos Maciel e Eduardo Coutinho, O Homem que Comprou o Mundo pode ser considerado uma comédia distópica de FC, sendo a estréia do diretor Eduardo Coutinho e da atriz Marília Pêra em longa-metragem. Produzido por Zelito Viana, com música de Francis Hime, fotografia de Ricardo Aronovich e montagem de Roberto Pires, O Homem que Comprou o Mundo usufrui ainda de um elenco de peso: Flávio Migliaccio, Cláudio Marzo, Jardel Filho, Hugo Carvana, Rogéria, Ambrósio Fregolente, Abel Pêra, Antônia Marzullo, Dilmen Mariani, Carlos Kroeber, Juju Batista, Célio Moreira, Márcia Rodrigues, Delorges Caminha, Maria Bethânia, Edu Melo, Marília Carneiro, Emiliano Queiroz, Natália Timberg, Eugênio Kusnet, Fernando Mergulhão, Hélio Ary, Hélio Bloch, João Neves, Katsuo Kon, Mário Brasini, Milton Gonçalves, Pedro Correia de Araújo, Raul Cortez, Nildo Parente, Rubens de Falco, Roberto Maya, Amândio Silva Filho, Paulo César Pereio, Célio Moreira.
Irreverente e alegórico, O Homem que Comprou o Mundo foi o primeiro longa de ficção de Eduardo Coutinho, experiência que, todavia, não compromete a coerência da obra do cineasta.

Um comentário:

Nei Duclós disse...

Que maravilha de resenha. "Carreguei" todo o filme, que estava encruado na memória. "O ouro das strikmas é tão raro que só existe nas próprias strikmas" é uma declaração clássica, antológica. Lembrei que antes de morrer, o homem do turbante levanta os braços e grita para o alto: Hailê Selassiê! O folcórico rei da Etiópia estava na moda. O jogo de futebol ao som do canal 100 é também inesquecível. A MOSI, tão misteriosa, tinha um cartaz gigantesco na sua sede exibindo a sigla. Filme tremendo de bom. Obrigado.