terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Bye, bye Terra querida...


When Worlds Collide (1951) abre com uma citação do Velho Testamento que anuncia o “espírito” do filme, nada menos que uma adaptação do tema da Arca de Noé para o contexto da ficção científica. Nesta produção de George Pal em Technicolor, cientistas reputados descobrem que uma estrela (Bellus) invadiu o Sistema Solar e está em rota de colisão com a Terra. Antes do choque, porém, o planeta que orbita essa estrela (Zyra) passará bem próximo da Terra, provocando uma série de cataclismos. O Dr. Cole Hendron (Larry Keating) é o principal porta-voz desse alerta e idealizador de um plano de salvamento para a espécie humana. Ele defende a construção de uma espaçonave que cumpriria a função da Arca de Noé. Antes do choque com a estrela, algumas dezenas de pessoas selecionadas e animais da fauna terráquea deveriam embarcar na espaçonave e deixar a Terra rumo a Zyra, aproveitando a proximidade entre os dois corpos celestes.
O problema é convencer o restante da comunidade científica e as autoridades mundiais de que a catástrofe é iminente e não há outra saída senão esse plano audacioso. Numa reunião de cúpula com delegações do mundo inteiro, os representantes das nações questionam e desacreditam o Dr. Hendron. Nessa seqüência, a manifestação do representante do Brasil soa lisonjeira aos espectadores tupiniquins, afinal ele fala em bom português (embora de Portugal). Mas a reunião não acaba bem para a humanidade. O alerta do Dr. Hendron é subestimado e o tempo continua correndo. Entra em cena Sydney Stanton (John Hoyt), um rude milionário que resolve patrocinar a construção da espaçonave para salvar sua vida – sim, não é altruísmo nem solidariedade que move o milionário, mas egoísmo puro. Quando a conta é astronômica, o Estado mínimo liberal tira o time de campo, e mais uma vez é a iniciativa privada que propele os grandes feitos da humanidade (como em Destination Moon).
Feito o acordo entre Stanton e o Dr. Hendron, a “Arca” começa a ser construída. Desenhada por Chesley Bonestell, a nave de metal polido tem um design elegante e deve decolar com o auxílio de um gigantesco tobogã. Nesse meio tempo, Zyra passa perto da Terra e provoca destruição em massa no planeta. Muitas imagens de arquivo e cenas curiosas obtidas com o uso de maquetes ilustram a devastação. Dentre as imagens mais curiosas de When Worlds Collide estão a das “ondas gigantes” invadindo o centro de Nova York, ou a da metrópole submersa, vista de um helicóptero por David Randall (Richard Derr) e o Dr. Tony Drake (Peter Hansen). Tais imagens demonstram que filmes como O Dia Depois de Amanhã (The Day After Tomorrow, dir. Roland Emmerich, 2004) ou Armaggedon (dir. Michael Bay, 1998) reeditam idéias de When Worlds Collide, com efeitos especiais atualizados. Vale a pena lembrar que Gordon Jennings arrebatou o Oscar de Efeitos Especiais de 1952 pelo trabalho em When Worlds Collide.
A Terra está em ruínas e Bellus continua a caminho para o golpe de misericórdia. Começam os sorteios para decidir quem, dentre os mais aptos, deverá ocupar os assentos restritos da espaçonave. Tem início uma série de conflitos decorrentes do instinto de sobrevivência e/ou sentimentos menos nobres da espécie humana. A espaçonave acaba decolando em meio a grande confusão, pouco antes do choque de Bellus com a Terra. A bordo não está o milionário Stanton, para seu desespero seguro em terra pelo Dr. Hendron. Num último ato de altruísmo, o cientista defende que cada tripulante implica gasto de combustível, e dois velhos a menos na espaçonave aumentariam as chances dos jovens chegarem sãos e salvos a Zyra. A arca interplanetária pousa em Zyra, que inicialmente apresenta uma topografia montanhosa, coberta de neve. Num rompante, parte da tripulação abre a comporta da espaçonave, num lance tão anti-científico quanto passional. Mas depois de toda essa aventura, não seria uma simples atmosfera a estragar o futuro da espécie humana – e do casal David Randall e Joyce Hendron (Bárbara Rush). Zyra não só tem ar fresco e respirável, como uma paisagem idílica (verdadeira pintura), que John Brosnan comenta remeter aos desenhos da Disney (The Primal Screen, 48). Segundo o Internet Movie Data Base (www.imdb.com), Pal pretendia utilizar maquetes para descrever a paisagem de Zyra, mas a Paramount teria lançado o filme antes que esse trabalho pudesse ser feito, mantendo a pintura precária usada preliminarmente. O filme termina com David e Joyce descendo juntos as escadas da espaçonave, como Adão e Eva em direção a um novo Éden.
Comparado a Destination Moon (dir. Irving Pichel, 1950), When Worlds Collide parece menos preocupado com detalhes de verossimilhança científica - ainda que também tenha contado com a consultoria técnica de Chesley Bonestell, especialista em paisagens interplanetárias e demais tipos de “arte astronômica”. O problema da gravidade, por exemplo, inexiste no interior da espaçonave, e o próprio tema central (a colisão de uma estrela contra a Terra) é cientificamente volúvel, pelo menos sob o exame da Física e Astronomia atuais. O plano proposto pelo Dr. Hendron é totalmente fabuloso, e fica a impressão de que premissas científicas são valorizadas ou completamente omitidas segundos interesses da fábula – aliás, algo natural e costumeiro numa narrativa de ficção científica, mas já feito de maneira mais habilidosa. O filme contém vários erros científicos, de roteiro e de continuidade, conforme pode ser conferido em http://www.imdb.com/title/tt0044207/goofs. Exemplo de deficiência incômoda da produção são as imagens indicativas da Nova York deserta, fotografias que se denunciam pelas pessoas “congeladas” na paisagem. Conforme aponta John Brosnan, o choque de Bellus com a Terra não é mostrado nitidamente (The Primal Screen, p. 48). Além disso, Brosnan pergunta com bom humor se When Star and Planet Collide não seria um título mais preciso para o filme (The Primal Screen, p. 48). Mas nada disso importa afinal, na medida em que tudo serve ao propósito de recriar o mito de Noé num contexto interplanetário. Até o triângulo amoroso entre os personagens do piloto Randall, do Dr. Tony e de Joyce Hendron é eclipsado pela atmosfera de crise e imagens impressionantes, resolvendo-se de forma surpreendentemente civilizada. Mais relevantes que as especulações científicas talvez sejam as sociológicas e psicológicas, conforme se verifica na escalada da tensão face à proximidade do apocalipse. O espetáculo é a prioridade, ao qual se submetem toda e qualquer premissa (pseudo)científica.
When Worlds Collide é baseado no romance de mesmo nome de Edwin Balmer e Philip Wylie, pulicado em 1934. Os direitos do livro foram originalmente comprados pela Paramount para que Cecil B. DeMille filmasse a estória. Mas como em A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds), DeMille acabou abandonando o projeto. Dirigido por Rudolph Maté (cineasta nascido na Polônia, começou sua carreira como cameraman já no período mudo), When Worlds Collide tem seu roteiro assinado por Sydney Boehm. Boehm se tornaria especialista em roteiros de filmes policiais, escrevendo o script de The Big Heat (1953), de Fritz Lang, entre outros trabalhos (Cf. John Brosnan, The Primal Screen, p. 46). A idéia do choque entre planetas pode ser tomada como metáfora do holocausto nuclear, e foi provavelmente explorando essa analogia que Pal deve ter conseguido viabilizar a produção (Cf. John Brosnan, The Primal Screen, p. 48). Com efeitos interessantes e imagens fabulosas que preconizam o espetáculo, When Worlds Collide é representativo do boom do cinema de FC americano dos anos 1950, bem como de um cine-metáfora da paranóia nuclear onipresente nos tempos da Guerra Fria, figurando até hoje como filme-matriz da vertente dos disaster movies - filmes de apocalipse que procuram sublinhar os traços mais nobres da humanidade em perigo.

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