terça-feira, 1 de janeiro de 2008

El Extraño Caso del Hombre y la Bestia


El Extraño Caso del Hombre y la Bestia (1951), produção da Argentina Sono Film S.A.C.I. dirigida e protagonizada por Mario Soffici, inicia de forma bastante fiel à novela de R. L. Stevenson, com uma conversa entre dois cavalheiros a respeito de uma estranha porta que dá para os fundos da casa do Dr. Jekyll. Nessa conversa, o personagem do advogado (equivalente a Utterson na narrativa original) ouve relato a respeito de uma estranha ocorrência, dias atrás, quando uma criança fora agredida por um homem repugnante.
Diferentemente de futuras adaptações americanas da estória de Stevenson, o ponto de vista não se confunde logo de imediato com o do Dr. Jekyll, num procedimento que imita a estrutura narrativa da novela. Mais eventos fiéis ao texto original irão se suceder, como o misterioso assassinato de um homem a golpes de bengala (o assassinato de Sir Carew Danvers, no original). Mas logo o filme assume um tratamento mais livre da criação de Stevenson, como em futuras adaptações da mesma obra.
Decidido a não mais se transformar em Hyde (tarde demais, porém), Jekyll terá mulher e um filho, personagens totalmente ausentes da novela. Mas não demora muito para que retorne o reprimido. A caracterização do monstro merece destaque nesta adaptação argentina do texto de um escocês. Ao invés de uma figura oblíqua, portadora de uma deformidade indefinível, Eduardo Hyde é um homem esguio, se move com certa agilidade e parece fisicamente poderoso. Ele é completamente calvo (em contraposição a um Dr. Jekyll de barba e cabelos grisalhos), tem unhas compridas, dentes pontiagudos projetados e pele escura. Hyde chega a lembrar o Nosferatu de Murnau em alguns momentos, exceto pela pele escura, que confere um caráter racista difícil de dissimular neste filme argentino.
Merecem destaque também as seqüências de transformação, nada constrangedoras se comparadas às de adaptações posteriores. Na primeira, talvez a mais interessante, Jekyll está brincando com seu filho quando começa a sentir os efeitos de uma transformação involuntária. Ele sai em disparada pela casa, atravessa o quintal e chega à casa dos fundos onde, à meia-luz, revela-se na pele de Hyde. A segunda transformação se dá num túnel do metrô, com a sombra dos vagões passantes projetada sobre o rosto de Jekyll enquanto este assume sua identidade nefasta. A terceira transformação, desta vez de Jekyll em Hyde, aos olhos de uma testemunha, também surpreende pela técnica. A fotografia de El Extraño Caso del Hombre y la Bestia é assinada por Antonio Merayo e lembra a das películas alemãs dos anos 1920. O sucesso das seqüências de transformação é creditado também a Neron Kesselman, chefe do departamento de maquiagem da Sono Films, que começou sua carreira ajudando a escurecer a pele dos atores que interpretavam índios nos filmes de gaúcho. Kesselman utilizava um pó cor de laranja para obter a pele morena fotografada em preto e branco. Em El Extraño Caso del Hombre y la Bestia, Mario Soffici teve de raspar a cabeça para interpretar o papel de Hyde, usando uma peruca nas cenas em que fazia Jekyll.
A introdução de uma esposa do Dr. Jekyll, algo bastante singular, promove situações inusitadas, como o médico elaborando estratagemas para manter sua família em segurança. Conforme as transformações em Hyde vão se tornando mais freqüentes, Jekyll vai se isolando por cada vez mais tempo na casa dos fundos. Mais interessante que isso, porém, é como o filme mistura as duas personalidades antagônicas. Mesmo Hyde evita desesperadamente o contato com o filho de Jekyll, temendo pela criança. Com base na novela de Stevenson, toda e qualquer bondade de Hyde é algo totalmente inesperado.
Embora em circunstâncias diferentes, o suicídio de Hyde/Jekyll acaba por reatar o filme, em seus últimos momentos, ao texto original. Em suma, El Extraño Caso del Hombre y la Bestia é uma experiência interessante do cinema argentino no campo da narrativa fanástica ou de ficção científica, prenunciando uma qualidade, familiaridade e até mesmo ousadia pouco comuns nas demais cinematografias latino-americanas.
No cinema brasileiro, O Médico e o Monstro não seria pensado senão enquanto paródia ou chanchada. No cinema argentino não. As verdadeiras razões dessa diferença podem esclarecer aspectos importantes a respeito da ficção científica no nosso cinema.

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